Biólogo investiga o quão resilientes são os ecossistemas das praias do Rio de Janeiro – 19/09/2024 – Ciência Fundamental


A aula de biologia acontecia no pátio da escola. Ao percorrerem o terreno em busca de exemplos de interações ecológicas, professor e alunos avistam um tipo bem emblemático dessas interações: a de predação. Um lagarto devorava uma aranha. Keltony de Aquino Ferreira, hoje com 29 anos, lembra aquele momento, de mais de uma década atrás, como uma das passagens que o motivou a ser biólogo.

A escolha da especialização, em biologia marinha e ecologia, carrega notas de ironia. Alérgico a frutos do mar e nadador não mais do que medíocre, segundo ele próprio, ao longo de anos estudou populações de camarão, e, hoje, ao investigar como processos erosivos alteram a biodiversidade, ou como a urbanização está expulsando a fauna das praias, tem outro crustáceo como aliado, o caranguejo maria-farinha (Ocypode quadrata).

O O. quadrata apresenta a interessante (e útil) característica de ser um indicador ambiental, ou seja, sua presença atesta a saúde do ecossistema, explica Keltony. Uma esquisitice provocada pela ocupação humana, por exemplo, consiste no passeio noturno dos maria-farinha até o asfalto –eles confundem a luminosidade de postes com luzes naturais, como as do sol e da lua, que normalmente os atrairiam. E a aventura acaba lhes custando a vida, pois são atropelados ao “buscar a luz”.

Outro indicador ambiental é o besouro-tigre Cylindera nivea. Como ele depende de um ambiente intocado para se alimentar e se reproduzir, encontrá-lo é um bom presságio. Mas está ficando cada vez mais difícil achá-lo (já que ambientes preservados são, por si só, cada vez mais raros).

Os artrópodes (como o crustáceo e o inseto mencionados) são casos especialmente vistosos, mas bichos menores também serão objeto dessa investigação taxonômica. Além disso, os processos erosivos e a ocupação urbana, e como eles podem afetar os padrões e processos ecológicos na praia, serão investigados. “A ideia é chegar no nível da espécie, entender quem é mais afetado, quem é mais resiliente”, explica o cientista.

Para a jornada, Keltony tem contado com o apoio do Instituto Serrapilheira e da Faperj, por meio de uma chamada que beneficiou 12 pesquisadores negros e indígenas, com enfoque em ecologia.

O biólogo nasceu em Cachoeiro do Itapemirim e viveu a infância na cidade de Cariacica, ambas no Espírito Santo. Morava com a mãe, Iranildy, dona de casa; o pai, Adilcimar, motorista de ônibus, e a irmã Kessuley, que hoje trabalha no varejo. “Era uma vida simples, mas eu não tenho do que reclamar, apenas gratidão.”

“Naquele ambiente de roça, eram poucas casas, com poucos vizinhos. Eu ficava tentando dar nome para os bichos e as plantas, não tinha muito com quem brincar”, lembra.

Aos 16 anos, ele, que nunca tinha viajado sozinho, saiu de Cariacica para cursar biologia na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), no campus de Alegre, Sul do Espírito Santo. Estava motivado e ansioso para a nova vida, mas a faculdade teve seus altos e baixos.

A parte boa foi que ali logo se iniciou sua relação com a pesquisa, especificamente com a investigação da distribuição espacial de organismos marinhos, como o camarão.

O crustáceo o acompanhou também na pós-graduação. No mestrado ele conseguiu analisar a distribuição de populações de camarão entre os estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro, a partir de isótopos de nitrogênio e carbono no organismo dos bichos. Ou seja, a proporção dos tipos de átomos variava de acordo com a localização dos animais, indicando diferenças em seus padrões alimentares, por exemplo.

No doutorado, Keltony ampliou a análise para outras espécies de camarão, entendendo a relação entre elas e como compartilham o habitat, com resultados que podem ajudar na sustentabilidade e rastreabilidade dos estoques pesqueiros.

A parte ruim naquele início da vida acadêmica foi o preconceito, que ele não demorou a sentir. “Eram 63 alunos, e apenas eu e uma colega éramos negros”, relata. “Eu era excluído das rodas de conversa; nos trabalhos em grupo, ficava entre aqueles que sobravam para formar um grupo dos excluídos… Fiquei isolado até meu quarto período da graduação. Depois as pessoas me disseram que, no início, achavam que eu não ia durar um mês ali dentro.”

Para enfrentar a situação, o caminho foi mergulhar nos estudos, e provar-se em dobro, a cada trabalho, a cada prova, e saber apreciar a própria companhia.

Se para Keltony a situação finalmente melhorou depois de um tempo (e de sucessivas provações), no macrocosmo da pesquisa brasileira ainda há grandes gargalos para pessoas negras, ele diz.

“Existem muitos problemas em concursos para cotistas. Há casos em que pessoas negras são eliminadas de concursos públicos sem qualquer transparência no processo. Você não tem a quem recorrer. E pessoas brancas acabam ocupando essas posições.”

E mesmo sem considerar o viés de cor, o panorama ainda está repleto de problemas. “Falta investimento, não há reajuste de bolsas, não há novas vagas —só quando o docente ou pesquisador se aposenta ou morre.”

Uma das iniciativas em que Keltony se engajou foi o Praia com Vida, projeto de extensão da Universidade Estadual do Norte Fluminense. Ali a meta é conscientizar as pessoas sobre o que é aquele lugar que estão visitando, entender que a praia é um ecossistema rico, repleto de interações complexas. O projeto visa aproximar ciência, educação ambiental, pesquisa e comunidade, discutindo o impacto da ação humana.

Foi nessa aventura praieira que floresceram as ideias da pesquisa do momento, sobre fatores que interferem nos ecossistemas.

“Aqui mesmo no Brasil tem gente perdendo suas casas por causa do avanço do mar. Além da maré, pensei que poderia ter outras coisas modulando essa biodiversidade. Quando vi que não havia estudo científico, veio o interesse de fazer uma pesquisa nova, original, entender o que controla a biodiversidade, se são mais aspectos físicos, como temperatura, a erosão, a presença de outros animais… É uma alegria ser apoiado para tocar essa iniciativa.”

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Gabriel Alves é jornalista.

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