Vera Iaconelli aborda felicidade ilusória em novo livro – 21/09/2024 – Equilíbrio


A idealização da felicidade transformou-se em um platô na sociedade contemporânea. Esse fenômeno está associado a diversos sintomas, como romantização da parentalidade, polarização política e imposição de normas sociais sobre gênero e sexualidade, especialmente para mulheres e pessoas LGBTQIA+.

Essas pressões reforçam a ideia de que a conformidade é o caminho para a felicidade, fazendo com que qualquer divergência seja vista como um fracasso. Nesse processo, a insatisfação e a ansiedade são intensificadas. Vera Iaconelli discorre sobre esses temas em seu mais recente livro, “Felicidade Ordinária”.

A obra elenca mais de 90 textos que a psicanalista e colunista da Folha publicou no jornal. O lançamento será neste sábado (21), às 11h, na livraria Bibla, em São Paulo.

Iaconelli usa a psicanálise como uma lente para abordar questões íntimas e amplia discussões sobre feminismo e parentalidade, destacando que o sofrimento individual está profundamente conectado às tensões sociais.

O título não é por acaso: a autora usa as ideias de Freud para explorar a relação entre sofrimento e contentamento, afirmando que “a felicidade se tornou um produto, entre outros, a ser adquirido a partir de objetos que vão ser comprados ou de uma ideia de que a gente consegue alcançar um estágio ilusório de bem-estar”.

A sociedade atual, que valoriza a busca incessante pela felicidade, contrasta com a visão freudiana de que o sofrimento é inerente à condição humana e que a felicidade é, na verdade, episódica e fugaz.

Iaconelli observa que “para Freud, mesmo ao final de uma análise bem-sucedida, na qual o sujeito consegue se livrar de um sintoma incômodo, ela vai levar para a tristeza ordinária, porque tem algo na nossa existência que é intrinsecamente trágico”.

Esse “sofrimento ordinário” é visto pelo psicanalista como uma parte essencial da vida, sugerindo que, ao aceitarmos nossa vulnerabilidade e finitude, “nós teremos a felicidade sempre episódica, nunca como um platô que se alcança”.

Freud critica o consumismo como uma busca por satisfação de desejos inconscientes, afirmando que essa satisfação é temporária. O acúmulo de bens não preenche as necessidades psíquicas, levando à alienação e gerando outros tipos de mal-estar na sociedade.

Dentro da lógica capitalista abordada nos estudos da filósofa italiana Silvia Federici, também citada no livro de Iaconelli, reforçam-se estereótipos de gênero, estimulando mulheres a se conformar com papéis tradicionais ligados à maternidade e à domesticidade, por meio da aquisição de produtos que supostamente validam esses ideais.

Como Iaconelli menciona, “as lutas femininas estão avançando, assim como as conquistas, mas, em função disso, a violência contra as mulheres tem aumentado significativamente”.

Desde o Renascimento, o patriarcado tem controlado politicamente a sexualidade e a reprodução das mulheres, perseguindo aquelas com conhecimentos sobre controle de natalidade e parto, rotulando-as como bruxas, segundo o pensamento de Federici.

Esse controle reforçou a dominação patriarcal, relegando as mulheres a papéis subordinados. Ao longo dos séculos, o patriarcado usou a violência e a doutrinação para que as mulheres se conformassem ao ideal de “belas, recatadas e do lar”, fundamental para o capitalismo, que explorava o trabalho feminino, muitas vezes invisível e não remunerado.

“Ao passo que as mulheres se tornam mais independentes e começam a questionar padrões que antes não percebiam, elas enfrentam um aumento de feminicídios e outras formas de violência”, completa Iaconelli.

Essa situação pode ser entendida como uma reação a esses avanços, em vez de um fato isolado. “Quando as mulheres começam a afirmar seus direitos e a dizer ‘não’, os homens que não aceitam essa mudança tendem a se tornar cada vez mais violentos.”



Quando as mulheres começam a afirmar seus direitos e a dizer ‘não’, os homens que não aceitam essa mudança tendem a se tornar cada vez mais violentos

Federici observa que essa dinâmica de consumo reforça as estruturas de poder, transformando as mulheres em consumidoras de bens que as mantêm subordinadas ao patriarcado, enquanto seus corpos e desejos são controlados para atender às necessidades econômicas e políticas do sistema.

Iaconelli também discorre sobre o papel da sociedade nesse contexto. A sobrecarga feminina no papel dos cuidados não se limita apenas ao cuidado das crianças, mas inclui também o cuidado do parceiro, dos doentes da família, dos sogros e dos avós.

A solução proposta muitas vezes sugere que os homens assumam a mesma carga de trabalho que as mulheres. “Essa é uma resposta não-liberal, porque se baseia numa ideia de vida privada, resolvendo problemas sociais a partir do indivíduo e do universo privado.”

Ela argumenta que, na verdade, as empresas, as políticas públicas e a sociedade como um todo precisam se responsabilizar pelas próximas gerações. Isso exige pensar além do modelo familiar e incluir todos, mesmo aqueles que não têm ou não pretendem ter filhos.

Entre feminismo, sexualidade, parentalidade, costumes, questões LGBTQIA+ e outros temas, o livro aborda angústias e desafios contemporâneos que afetam tanto o indivíduo quanto a sociedade. Os textos escolhidos para a obra refletem os estudos que a autora vem desenvolvendo nos últimos sete anos.

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