O Tempo Sagrado – 19/09/2024 – Djamila Ribeiro


Acompanho de longe, consternada, os incêndios que devastam florestas brasileiras, poluem o ar e aquecem o planeta.

Enquanto assistimos a esse cenário desolador, fica evidente a urgência de uma mudança de consciência e de atitude para interromper essa marcha rumo à destruição ambiental e ao colapso climático. Aproveito a jornada de mitologia dos orixás nesta Folha para tratar do orixá que certamente possibilita reflexões necessárias a respeito disso.

Refiro-me a Iroko, a divindade que nos oferece aquilo que deveria ser o mais precioso de todos os bens: o tempo.

Conta um de seus itãs —relatos míticos e histórias sagradas das religiões de matriz africana— mais conhecidos que, no princípio do mundo, o tempo não existia como o conhecemos hoje. Ele era uma força imprecisa e desordenada, o que causava preocupação entre os ancestrais, pois sem o controle do tempo as estações não se sucediam corretamente e a vida se tornava caótica. Foi então que Olorun, o Deus Supremo, decidiu plantar uma grande árvore no centro do mundo: a árvore sagrada de Iroko.

Sua origem é tão antiga que ninguém sabe ao certo quando surgiu. Mas se sabe que, com Iroko começou o tempo e ao seu redor ergueu-se uma imensa floresta. Ele é a grande morada da memória, da harmonia e da sabedoria, sendo reverenciado por sua longevidade e pela sua conexão com o equilíbrio da vida.

Com raízes profundas e galhos que alcançavam os céus, essa árvore-orixá se tornou a guardiã do tempo. Ela sabe o momento exato em que cada folha deve cair e cada fruto deve amadurecer. Cada coisa tem seu ciclo para acontecer e as pessoas que aprenderam a honrar o tempo sabem que ele não pode ser apressado.

Ao contrário de Chronos, da mitologia grega, que personifica o tempo linear e cronológico, o tempo de Iroko é cíclico, representado no xirê —a dança circular dos orixás. Nessa roda, cada divindade é celebrada, começando pela pessoa iniciada há mais tempo até a mais jovem. Iroko compreende que, em algum momento, o mais velho encontrará o mais novo, pois o ciclo da vida é contínuo. O mais novo necessita do mais velho para conhecer os caminhos trilhados, enquanto o mais velho precisa do mais novo para se ancestralizar.

Respeitar o tempo, então, significa reconhecer que ele não pode ser acelerado nem desperdiçado. É através do tempo que construímos nossas memórias, nossas histórias e nossas realizações. No entanto, o desperdício do tempo pode ocorrer de diversas maneiras, muitas vezes imperceptíveis. Perdemos tempo ao nos cercar de pessoas que não nos fazem bem, ao aceitar compromissos que deveríamos ter recusado, ao mentir, cometer injustiças, ceder ao medo ou nos rendermos à procrastinação.

Cada uma dessas escolhas nos afasta do que realmente importa, impedindo-nos de viver plenamente o presente que Iroko nos oferece.

Quando concentramos nossas energias no que verdadeiramente importa, ressignificamos o tempo, transformando-o em fonte de maturidade e sabedoria. Há, inclusive, uma generosidade intrínseca em Iroko que permite aos “desperdiçadores de tempo” reencontrarem o caminho e se tornarem “aprendizes do tempo”.

Como uma árvore que se adapta, desviando suas raízes para superar obstáculos e inclinando-se em busca de luz, nós também podemos crescer e florescer ao enfrentar desafios com criatividade e resiliência. Aproveitar o tempo é, portanto, seguir um propósito.

Foi com fé na grandiosidade de Iroko, mesmo diante das adversidades, que os povos africanos atravessaram as eras até os dias de hoje. Essa mesma sabedoria ancestral se torna um alerta contra as estruturas coloniais que aceleram o tempo em nome de um lucro incessante, desconsiderando o equilíbrio natural que Iroko simboliza.

O impacto dessa aceleração desmedida é visível: verões cada vez mais intensos, invernos breves, geleiras em colapso e ecossistemas inteiros ameaçados. Trata-se de um desperdício coletivo de tempo, cujas consequências são sentidas por toda a humanidade.

Mas aqui reside mais uma das grandes lições da —com o perdão da paráfrase— “ordem iroquiana” do tempo: a transcendência é capaz de ressignificar até mesmo o tempo desperdiçado. Seu tempo pode ser ferido e, assim sendo, pode ser recuperado. Os galhos da árvore sagrada podem voltar a crescer e florescer, a terra se restaurar, as águas se despoluírem. O tempo, nessa perspectiva, é regeneração.

Por uma compreensão ancestral da vida, que possamos aprender com Iroko que o tempo é Orixá e, como tal, dever ser reverenciado. O tempo é sagrado.


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