O Homem Cordial traz Paulo Miklos em drama violento e realista

O Homem Cordial traz Paulo Miklos em drama violento e realista

“O Homem Cordial” é uma obra de ficção. Ainda assim, poderia facilmente ser uma reportagem no noticiário. Fala sobre a cultura do cancelamento. Sobre o clima de ódio em que mergulhou o país. Sobre racismo. Sobre a alienação dos privilegiados. Sobre um Brasil torto que, por conforto ou comodidade, muitos preferem não prestar atenção. Mudar de canal.

O diretor Iberê Carvalho (“O Último Cine Drive-In”) filma sua indignação com urgência. A ação em “O Homem Cordial” se resolve em uma noite, em que o conjunto de boas intenções e decisões erradas desaba como um dominó, expondo feridas no tecido social que vão demorar a cicatrizar – se isso de fato acontecer. Não existe, porém, vocação para o panfletarismo: a ideia aqui ainda é contar uma boa história.

No centro dela está Aurélio (Paulo Miklos), roqueiro famoso dos anos 1980 que reúne sua banda em um movimento nostálgico. O primeiro show é interrompido por uma plateia hostil, e não tardamos a descobrir o motivo. Mais cedo, o cantor impediu que uma turba atacasse um garoto, uma criança com 10, 11 anos, acusado de furtar um celular. Na confusão, o menino corre e é perseguido por um PM à paisana. O policial termina morto e Aurélio, sem a menor ideia do que aconteceu, ganha a estampa de “defensor de bandido”.

As circunstâncias fazer o músico se envolver ainda mais com a história quando Helena (Dandara de Morais), uma jornalista independente, lhe diz que o garoto está desaparecido. Em uma noite que parece interminável, Aurélio passa de coadjuvante involuntário a protagonista ao tentar resolver o caso, envolvendo um ex-companheiro da banda (papel de Thaíde) e a irmã do desaparecido (Tamirys O’Hanna).

Existe em “O Homem Cordial” um desespero que espelha “Depois de Horas”, de Martin Scorsese, na jornada de Aurélio – o trabalho excepcional de Paulo Miklos amplifica a sensação. Iberê Carvalho, no entanto, não busca desconstruir seu protagonista, e sim lhe remover o véu concedido por sua posição de privilégio. Para isso, o personagem testemunha, sem filtros, as consequências da injustiça social, da truculência policial e da devastação causada pela desinformação em redes sociais.

Acima de tudo, “O Homem Cordial” mostra que, depois de quatro anos de exposição maciça à ignorância nas altas esferas do poder, o brasileiro se tornou tudo, menos cordial. A diferença de classes é mostrada aqui de forma passivo agressiva, em que o respeito só existe com grades separando uma suposta elite da “plebe”. É um filme, mas poderia acontecer na portaria de seu condomínio.

Não é difícil identificar cada um dos arquétipos. Como a senhorinha racista que acusa o garoto de garfar seu celular sem ter a menor evidência. Ou o youtuber playboy que, smartphone em punho, registra o que ele enxerga como “denúncia” ou “indignação”, sem o menor compromisso com os fatos. Uma turma que se sentiria em casa acampada em frente a quartéis uns meses atrás. Um pessoal que facilmente se elegeria deputado federal para desfilar sua ignorância em plena Câmara.

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No mundo moderno, a mentira se alastra na velocidade das redes sociais

Imagem: O2 Play

Não que “O Homem Cordial” seja sem defeitos. A certa altura, Helena desaparece do filme e não ouvimos mais falar dela. A ingenuidade ante a banda podre da polícia, exibida pelo blogueiro progressista Rudah (Thalles Cabral), também não cabe nem na trama, muito menos num simulacro do mundo real. Mas são pecados menores em um filme que pega pelo estômago.

É curioso que “O Homem Cordial”, exibido e premiado no Festival de Gramado em 2019, tenha sido gestado ainda quando o Brasil não havia passado por sua devastadora experiência com a extrema direita. Com o noticiário pipocando com pessoas negras agredidas em supermercados, e populares linchando um inocente até a morte no Guarujá, o filme se faz dolorosamente presente. O ódio persiste, mesmo em um país que aos poucos se recupera de uma espiada perigosa ao abismo.

O cinema brasileiro tem, especialmente depois de enfrentar uma ditadura militar que perdurou por décadas, uma tradição política e social que por vezes incomoda. Esse desconforto é parte da função da arte. É certo que algumas pessoas vão detestar “O Homem Cordial”, mas seu discurso – “vai pra Cuba”, “defensor de vagabundo”, “comunista” – já está ali, em cena, escrito e atuado. Para eles, não deve ser fácil encarar a própria imagem no espelho.

douglasc

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